Projeto Amazônia
Reportagem da Folha radiografa os planos em curso e seus obstáculos para lidar com os principais problemas da Amazônia: acesso, desenvolvimento, exploração, preservação e direito à terra.
Introdução
Dilemas da floresta
Com pouca densidade eleitoral, a Amazônia não costuma atrair a atenção dos presidenciáveis durante a campanha. Mas a região depende sobretudo de Brasília para a implementação de grandes projetos de infraestrutura, para criar incentivos econômicos e para coibir o desmatamento ilegal, além da gestão de centenas de áreas protegidas, entre terras indígenas e unidades de conservação.
A preservação da floresta é fundamental para que o Brasil cumpra as metas de redução de emissões de carbono do Acordo de Paris, que tem como objetivo controlar o aquecimento global e que entrará em vigor em 2020. Por outro lado, cresce a pressão para expandir a fronteira agropecuária e para a exploração de recursos naturais, atividades que contam com forte apoio de governos locais e estaduais e do Congresso, principalmente por meio da bancada ruralista.
Na série que começa neste domingo (9), a Folha aborda temas controvertidos que estarão na mesa do próximo presidente: a pavimentação de uma estrada no coração da Amazônia, a redução de unidades de conservação, projetos hidrelétricos, a demarcação de novas terras indígenas, a regulamentação da mineração e a política de incentivos fiscais. As reportagens virão acompanhadas das posições dos principais candidatos sobre cada um dos assuntos.
Asfaltar ou não asfaltar?
Estrada que liga Manaus a resto do país ameaça abrir uma Alemanha na mata.
A poeirenta Realidade (AM) segue o ciclo de exploração descontrolada de madeira, que abre espaço para a grilagem e o desmatamento ilegal que precede a pecuária extensiva. A diferença é que a vila fica às margens da BR-319, que, se asfaltada, pode espalhar esse modelo de ocupação caótica a uma área da floresta maior que a Alemanha.
Inaugurada em 1976, a BR-319 tem quase 900 km e é a única ligação rodoviária de Manaus ao resto do país, via Porto Velho (RO). Contra a praxe, foi entregue asfaltada, mas a falta de manutenção fez com que perdesse o pavimento até ficar intransitável, em 1988.
Desde 1996, a rodovia voltou ao radar do governo. Desde então, o reasfaltamento de trechos próximos às capitais e as obras de manutenção têm melhorado a trafegabilidade e aumentado o fluxo de veículos, que levam pessoas e mercadorias, mas a falta de licença ambiental vem impedindo a pavimentação do chamado “trecho do meio”, de 406 km.
Há muito debate em torno dessa licença. O principal entrave para que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) não a emita é a baixa presença do Estado na região da BR-319, cujo asfaltamento viabilizaria também a abertura de quatro estradas estaduais projetadas.
A maior delas, AM-366, de 578 km, corta um parque nacional e terras indígenas. Ao todo, a área de influência da BR-319 equivale aos territórios da Alemanha e Holanda juntos, segundo estudo do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia).
A ausência do Estado piorou em outubro do ano passado, quando garimpeiros incendiaram os escritórios do Ibama e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em Humaitá (AM), município ao qual a vila de Realidade pertence.
“A BR-319 é uma enorme ameaça à floresta porque abre a metade que sobrou da Amazônia brasileira à entrada de desmatadores”, diz o ecólogo norte-americano Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), com sede em Manaus.
“A estrada conecta o Arco do Desmatamento [sul do Amazonas e Rondônia] com Manaus, que tem uma rede de estradas até Roraima, por onde podem sair os migrantes”, diz Fearnside, ganhador do Nobel da Paz de 2007 com outros cientistas do IPCC, o painel de clima da ONU, pelos alertas para o aquecimento global.
A melhoria de condições da estrada nos últimos anos já incentivou o crescimento de Realidade, que começou como assentamento do Incra e hoje tem cerca de 7.000 pessoas, boa parte vinda de Rondônia.
O estudo do Idesam sobre os impactos socioambientais da BR-319 mostra que, nos últimos oito anos, 305 km de ramais (estradas vicinais) foram abertos em torno de Realidade, principalmente por madeireiros. Apenas de 2016 ao ano passado, o total da área desmatada ali aumentou 17%.
“As ocupações são muito mais rápidas do que a presença dos governos nessas áreas”, diz a pesquisadora Fernanda Meirelles, coordenadora de políticas públicas do Idesam.
Segundo ela, a criação de unidades de conservação ao longo da BR-319 para mitigar os impactos não basta para manter a floresta preservada.
“Elas são muito importantes e atuam como barreira de desmatamento, mas já verificamos, em algumas unidades, ramais abertos. Quanto mais perto está de assentamentos e concentrações urbanas, mais vulneráveis estão”, diz.
MORADORES NOVOS E ANTIGOS
Em agosto, a reportagem da Folha percorreu a rodovia de Manaus a Porto Velho por três dias. De moradores atraídos à região nos anos 1970 a caminhoneiros atolados, todos apoiam o asfaltamento.
Em Realidade (a 600 km de Manaus e 290 km de Porto Velho) desde 2005, Valtair de Freitas, 58, é um dos migrantes atraídos por terras baratas e a perspectiva de pavimentação. Nascido no Paraná, foi jovem com os pais para Rondônia antes de subir para o Amazonas “em busca de mais espaço pra criar a família”.
Na região, Freitas cria gado de corte e leiteiro e explora madeira. Ele explica que ainda não conseguiu legalizar suas terras e que possui uma licença de manejo floresta expedida pelo governo estadual.
Freitas diz que, “para viver bem”, uma família precisa de mil cabeças de gado em mil hectares de pastagem. “A gente vem de fora e tem o pensamento só na criação de gado.”
O pecuarista diz ser possível viver na região em áreas de dez hectares, desde que o governo incentive a diversificação com agricultura e criação de peixes. Com o asfaltamento, afirma, a produção terá mercado em Manaus e seus 2,1 milhões de habitantes.
Moradora do “trecho do meio”, Maria José Cordeiro, 72, é uma rara pioneira dos anos 1970 que não abandonou a região mais inóspita da estrada, que costuma ficar isolada durante os meses de chuva. Hoje, a sua família é a única em dezenas de quilômetros.
Alagoana criada no Paraná, ela e o marido venderam a casa em Curitiba para comprar o sítio às margens da rodovia. Vivendo há quase quatro décadas sem eletricidade, sobrevivem por meio de uma pequena lavoura e de uma pousada, onde também servem comida.
“Quem não é [a favor do asfaltamento]? Só se for aleijado ou doido”, diz Cordeiro. “Os homens chegam de pescoço seco de tanto andar aí na pista. Arranca pneu, fura pneu, chegam só os molambos.”